sexta-feira, 7 de agosto de 2009

O palco da minha vida

Em cima da mesa-de-cabeceira de madeira, o pequeno écran azul do telemóvel parecia indicar o começo de uma noite quente e longa. Por cima dos lençóis de cetim, o cenário estava montado. A caneta segura por entre os delicados dedos, agora adormecidos; o caderno aberto sob a almofada. Linhas ainda frescas acabadas de tintar por cada sílaba pronunciada naquele coração.
Chegava agora a hora. Aquele corpo ali adormecido já nada podia fazer para combater o vazio que o preenchia. Lentamente, os seus pequenos olhos castanhos já semicerrados deixaram-se vencer. Duas lágrimas se soltaram e, uma por uma, percorreram em fúria a face daquela rapariga que jazia ali adormecida. Nada nem ninguém se poderia demonstrar indiferente àquela imagem… Era de facto doloroso ver a tristeza com que aquele rosto o reflectia. Nem a luz da lua, nem mesmo o vento que soprava ansiosamente sussurrando aos ouvidos das folhas verdes de Verão… Nada poderia deter o que ali se iria passar.
Todo aquele sofrimento delineado em cada traço da sua expressão, toda aquela sua posição, enroscada desde a ponta dos pés até à ponta dos cabelos, como uma simples criança que busca por mais um pouco de carinho e conforto; todo aquele longo cabelo molhado pelo rio de água que assim correu dos seus olhos durante aquela quente madrugada… Era de facto um daqueles momentos pelos quais pagaríamos para assistir na primeira fila, nem que fosse simplesmente para o poder partilhar. Mas aquela angústia, aquela dor, aquele sofrimento… Não se poderia comparar a uma simples representação. Não. Aquele molho de sentimentos era bem real, e sim, era ele que fazia adormecer todos os dias aquela rapariga, sempre com a mesma expressão, sempre com a mesma posição, sempre com o mesmo cabelo molhado. Era ali, deitada por entre os seus lençóis de cetim, vestida pelo toque suave do seu vestido de seda preto… Era ali que todos os dias o espectáculo tomava vida. E era assim que, sem excepção, mais uma noite repleta de estrelas abria o palco para o estrondoso complexo que era a sua mente…o sonho de uma vida. Ou poderíamos mesmo dizer, o pesadelo da sua vida? Sim, talvez fosse mesmo esse o melhor termo a aplicar, pois só a palavra ‘pesadelo’ poderia descrever o rumo que a vida daquela rapariga tomou. E era também assim que, todos os dias, sem excepção, ali eu marcava a minha presença. Todos os dias eu comprava o bilhete para, na primeira fila, assistir aquele espectáculo…aquela a que eu chamava a minha mais recentemente adquirida “droga mais doce”. Por vezes chegava mesmo a ser o único espectador, mas a verdade, essa, é que eu nunca me cansava de ver todas as noites as mesmas cadeiras vazias, o mesmo cenário, o mesmo final triste. Houvesse o silêncio que houvesse, a tempestade que houvesse…para mim, valeria sempre a pena pagar para observar mais uma vez aquele espectáculo. Porque, no fundo, aquele espectáculo era o MEU.
Aquele foi o rumo que a minha vida tomou, aquelas foram as noites que se passaram a seguir uma após outra, aquele foi o caderno no qual todas as noites eu me deixei adormecer. Tudo para que eu pudesse assistir todos dos dias àquele que era o meu espectáculo. Tudo para que um dia eu conseguisse transpor as minhas lágrimas, a minha fúria interior, este grito que preciso de soltar cá para fora. Tudo para que um dia eu pudesse pegar nas memórias menos boas, pintá-las no meu caderno, soltá-las no palco e, assim, libertar-me deste pesadelo e construir o meu final feliz.
Todas as noites, uma por uma, assim será este o meu caminho. Assim serão estas as cortinas que eu irei ver a abrir e fechar todas as noites… Aquelas cortinas onde eu poderei revelar o que sinto, onde eu jamais terei de esconder o que sou. O final feliz? Esse? Não sei onde estará… Por enquanto apenas sei que vou continuar a aplaudir este meu espectáculo. Talvez o meu final feliz esteja mesmo no dia em que as cortinas não se deixarem abrir. Talvez o meu final feliz esteja mesmo no dia em que o bater das minhas palmas não passará de um eco dessa dor a ressoar no meu coração.
Agora silêncio. O caderno já se encontra aberto sob a almofada, a caneta segura por entre os dedos delicados, agora adormecidos; as linhas ainda frescas acabadas de tintar por cada sílaba pronunciada pelo seu coração. A noite é longa, e um novo espectáculo está para começar. Preciso de ir comprar o bilhete para a primeira fila. Sim, agora sim… Silêncio. Luzes, câmara… Acção.

2 comentários:

  1. Estou a gostar bé. Quero ver mais hehe ;P
    Se precissares de alguma coisa, diz.
    Temos que criar um blog juntas..

    -cate

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  2. Está bonito, sem dúvida, e muito bem feito. Mas triste...

    Fiquei preocupado: que queres mesmo dizer com
    'Talvez o meu final feliz esteja mesmo no dia em que as cortinas não se deixarem abrir'?

    Cavaco

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